O documentário contempla a situação do refúgio urbano motivado pelo conflito entre facções, centrado na perspectiva de crianças e adolescentes das comunidades mais vulneráveis a este confronto na cidade de Fortaleza. Uma vez que se é expulso, sob os comandos em pixos nos muros de suas casas, as famílias amontoam-se em casa de parentes, em uma nova ocupação ou mesmo na rua. Partindo da premissa de que as fases de formação do ser-humano são os recortes mais desprotegidos de seus direitos elementares, a peça sublinha estas vozes ̶ por entre seus intrínsecos prismas lúdicos em interpretar violências físicas e simbólicas ̶ , reconhecendo-os como atores fundamentais de mudança e criadores de discussões, de modo a fomentar um debate de novos pensares, avaliar a proficuidade da assistência pública, assim como favorecer um maior engajamento em solver com iminência estes prejuízos; tateando, no ato de expressar, a possibilidade do construir novos territórios.
Em pouco menos de três meses desde o início do ano de 2018, o Ceará protagonizou a maior sequência de chacinas registradas no Brasil. Antes disso, o Mapa da Violência e o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) já constatavam e premeditavam uma culminância de alta incidência de violência letal nesta região, onde a juventude é apontada como um alvo preferencial. O recorde de mortalidade de jovens no Brasil também foi avaliado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) como sendo cearense. Os índices denotam uma efervescência de problemáticas que, uma vez acompanhadas em proximidade, entreabrem ramificações para novas questões, ainda pouco tateadas em estudos e dados, evidenciando ruídos no papel fundamental da comunicação em promover a democracia. Por estar inserida nestas comunidades através das redes de afeto, do registro-ativismo pela visibilidade de perspectivas pouco percebidas na cobertura midiática e, de maneira mais pungente, como moradora de um bairro cenário de chacina, o levante de observar, pesquisar e orientar caminhos para este problema emergiu – orgânico – como um ponto de partida iminente.
Uma vez que a lei brasileira e a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) reconhecem, como refugiados, “pessoas que se encontram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possa (ou não queira) voltar para casa”, sendo posteriormente considerados também aquelas motivadas por “conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos”, entende-se que ao nomeá-los desta maneira, faz-se, uma associação às consequências humanitárias que decorrem dessas violências, como a desterritorialização.
Tais analogias ao território como cerne de pertencimento foram apoiadas em Félix Guattari e Suely Rolnik, na obra “Micropolítica: Cartografias do Desejo”, quando entende que “o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. Teço elos entre a privação deste espaço de “subjetivação sobre si” e os relatos de alguns dos entrevistados quando confidenciam uma perda de sentido na vida. O niilismo do que antes era sustentado como lugar de convívio, cultura, comportamento e cognição, ainda que limitados, reverbera na perda de referência sobre como existir.
Nas entrelinhas da urgência de explorar o que condiciona o fenômeno recorde de homicídios contra os jovens nesta cidade, subjaz a necessidade dos cidadãos em repensar a cultura adultocêntrica, buscando explorar as peculiares manifestações juvenis para um melhor cerceamento do que carece a inteiriça da sociedade. Como formular medidas para os jovens sem debater com eles? O que memorizam, de que maneira se sentem afetados, como questionam o presente e concebem o futuro demarcam; elaboram o legado trazido por este documentário. Ouvir não apenas pelo que premedita o mero questionário, mas atento à maneira como cada indivíduo tece suas narrativas.
O registro ancora, à vista disso, no ato de concatenar memórias, imagens, ludicidades, reflexões, questionamentos do lugar e de quem nele não mais se insere, sob o levante de concentrar a visibilidade destas imensas violações de direitos no intento de construir novos espaços de resistir e existir pelo comunicar, onde aqueles que comumente são colocados em estigma narram o conflito pelo que dele depreendem. O enfoque sobre a criança e o jovem reivindica sobre a importância de fazer percebê-los, para além da perspectiva infantilizada, como fatores de mudança fundamentais no pensar de maneiras para melhor garantir seus próprios salvaguardos.