Para que possamos nos inspirar nesse momento (re)lembremos a grandiosidade, força e realidade das canções A carne (interpretada por Elza Soares) e Carta a mãe África (por Ellen Oléria e Gog). Antes de tudo devemos dizer que a música é também linguagem, e nesse sentido a linguagem, de acordo com Jobim e Souza (2001) é o que caracteriza e marca o homem, é nela que podemos ler a vida e a nossa própria história, imprimindo sentidos que, por mais que tenham a marca da provisoriedade ainda assim espelham o trânsito de nossa própria vida e de nossa existência histórica. Já dizia o grande estudioso do pensamento e da linguagem, fundamentado em uma perspectiva sócio-histórica, o brilhantismo Vygotsky que “A palavra é o microcosmo da consciência”.
Pois bem, as gerações de intérpretes as quais estamos aqui falando são diferentes, mas o assunto é vigente desde a constituição de nosso país. Aliás, ele(a)s cantam (e encantam) de um lugar na sociedade: do ser negro(a) nesse Brasil, no qual o mito da democracia racial detona, desde muito cedo, com a noção de pertencimento racial de brasileiros e brasileiras. E “quem diria?”, logo o Brasil o segundo país do mundo com maior população negra, depois da Nigéria. Eis uma questão histórica posta e instituída: entre as desigualdades sociais, a proeminência da desigualdade racial. Em aCarta a mãe África Gog nos convoca a “escrever entre a razão e a emoção”, e se pensarmos no ilustre sociólogo e político brasileiro Guerreiro Ramos, o qual com muita sabedoria enunciava que “Há o tema do negro e há a vida do negro… Mas uma coisa é o negro tema, outra o negro vida,” então, façamos! Observemos alguns trechos:
A carne mais barata do mercado é a negra
A carne mais marcada pelo Estado é a negra
[…] O plano fica claro … É o nosso sumisso
O que querem os partidários, os visionários disso
Por Ellen Oléria e Gog
(Grifos nossos)
A carne mais barata do mercado é carne negra
Que vai direto pro presídio e pra debaixo do sa-
-co plástico/ que vai direto pro subemprego/ e
Hospitais psiquiátricos
[…] O cabra aqui não se sente revoltado/ Por que
o revólver já está engatilhado/E o vingador é lento
Mas muito bem intencionado
Por Elza Soares
(Grifos nossos)
“A carne mais barata do mercado é a carne negra / A carne mais marcada pelo Estado é a negra”. A título de estatísticas, tomando por base o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde (MS), Julio Jacobo Waiselfisz, sociólogo, tem elaborado os mapas da violência no Brasil. Mais especificamente, o mapa referente a 2014. categoriza os homicídios de 2002 a 2012, até mesmo porque o critério raça/cor só começou a ser inserido no SIM a partir de 1996 (com grandes problemas de subregistro até 2002, mas ele já divulgava seus dados desde 1979). O que vemos? Uma nítida tendência na queda no número de homicídios da população branca e, por outro lado, um aumento no número de vítimas negras, tanto para o conjunto da população quanto para a população jovem (WAISELFISZ, 2014). Em números o mapa nos traz que, para o conjunto da população, entre os brancos, há uma queda de 24,8% e entre os negros um aumento de 38,7%. Gog está certo quando nos alerta que “o plano fica claro, é o nosso sumiço”, pois “A vitimização negra, no período de 2002 a 2012, cresceu significativamente: 100,7%, mais que duplicou” (WAISELFISZ, 2014, p. 150). E assim a nossa carne negra “vai pra debaixo do saco plástico”. Quanto à juventude negra… Cadê? “O número de homicídios de jovens brancos cai 32,3%, e dos jovens negros aumentam 32,4%. As taxas de homicídio de jovens brancos caem 28,6%; as dos jovens negros aumentam 6.5%” (WAISELFISZ, 2014, p. 151). “E o revólver já está engatilhado.”
“A carne mais barata do mercado é a carne negra / Que vai direto pro presídio”. Outro dado importante nos diz respeito ao índice da população carcerária no Brasil: em 2012 “os pardos eram a maioria no sistema penitenciário com 43,7% de presença nas prisões brasileiras. Os de cor branca 35,7%, os negros 17%, […] . Entre outros dados da fonte, a maioria dos presidiários tinha idade entre 18 e 24 anos, representando 29, 8%, e dos 25 a 29 anos, um percentual de 25,3%, além do nível de escolaridade entre a maioria no referido ano ser o Ensino Fundamental Incompleto, equivalendo a 50,5%. Desse restante ainda, segundo as informações, “14% eram alfabetizados, 13,6 tinham Ensino Fundamental Completo, 8,5 haviam concluído o Ensino Médio, 6,1% eram analfabetos, 1,2% tinham Ensino Médio Incompleto, 0,9% haviam chegado à universidade, mas, sem conclusão, 0,04 concluíram o Ensino Superior e 0,03 chegaram a um nível acima de Superior completo”. Mais uma vez jovens e negros caracteriza, há anos, o perfil da população presa brasileira.
“A carne mais barata do mercado é carne negra/ Que vai direto pro subemprego / pros hospitais psiquiátricos”. Sim, o censo nacional de 2011 nos trouxe, ineditamente, o perfil dos internados psiquiátricos e sob custódia: “homens negros, pobres, de baixa escolaridade e com inserção periférica no mercado de trabalho. A maioria das infrações cometidas foi contra seus familiares ou pessoas próximas. As mulheres representam a minoria da população internada (7% dos indivíduos), ‘uma minoria ainda mais silenciada nesse universo de anônimos’ (p. 16)”. E as “coincidências” ideológicas se repetem, não é mesmo? E o subemprego? Façamos, empiricamente, o famoso teste do pescoço como exemplo. Só nos atentarmos para a seguinte pergunta: onde nos concentramos mais, e, onde estamos ausentes? Para refletirmos um pouco mais, as últimas categorias a serem reconhecidas pelas Leis Trabalhistas foram justamente a dos trabalhadores rurais e dos empregados domésticos, essa última somente agora em 2013. E indagamos… quem sempre as ocupou? Eis aí, uma questão de gênero e raça interseccionada, 93,6% mulheres estão no trabalho doméstico, com predominância negra (HEILBORN, ARAUJO, BARRETO, 2010). Esses autores ainda nos alertam que dentre os 10% dos/das brasileiros mais pobres, 70,6% são negros/as, e, em setembro de 2009 um trabalhador /a branco ganhou em média 90,7% a mais que os negros/as. Nossa história vem de longe!
Nogueira (2006) nos diz que o preconceito brasileiro é de marca: fenotipicamente elaborado, ou seja, através da cor da pele, cabelo… Ah, a pele, o maior órgão do corpo humano em termos de extensão! Ah, o cabelo, símbolo de identidade e cultura negra. E é esse humano em termos de extensão! Ah, o cabelo, símbolo de identidade e cultura negra. E é esse cabelo que tanto se insiste em “lidar”, alisar. E assim compreendemos perfeitamente a triste constatação cantada por Gog e Ellen Oléria, pois “o que menos querem ser e parecer” é alguém que nos lembre em nosso visual. Porém se tornamafro convenientes para se apropriarem de direitos conquistados por nós. Exemplos? Cotas! Quando não “ameaça recalçar as botas” ao falarmos em uma mínima reparação.
Mas é “A carne mais barata do mercado “[…] que fez e faz história segurando esse país no braço”! A “[…] identidade racial é profundamente ideológica porque auxilia a identificação de quem são o ‘eles’ e quem são o ‘nós’. Sobre o ‘eles’, ficará depositado o pior de nós. E esse pior do ‘nós’ justificará a rejeição, a preterição, a exclusão e o genocídio (BENTO, 2014, p.18). Gog cantava “não há racismo sem uma social exclusão”, por isso, é realmente necessário continuarmos lutando, brigando, e nas palavras de Elza Soares “[…] brigar sutilmente por respeito/ brigar bravamente por respeito/ brigar por justiça e por respeito de algum antepassado da cor / A minha carne negra já está cansada de ser presa, de viver debaixo do papel preto, de lixo. Tudo que acontece é a minha carne negra. Tudo que acontece é minha carne negra. Vamos dar um basta e ta na hora de acabar com a violência. A violência, a violência. Nós vivemos hoje num país de guerra e não tomamos conta. Estamos esperando o que?Esperando o que mulheres do meu país?As matriarcas. Vamos a luta, vamos a luta! Precisamos de liberdade. Paz, paz. Vamos a luta! Arrebentar essas correntes. Tirar as grades de nossas portas. A liberdade, o direito de ir e vir. Saber que seu filho volta pra casa. A liberdade, a liberdade à minha carne negra! Justiça. Negra. Chega de ter menina de 13 anos levando tiro, negra!”.
r alt="box-sizing: content-box; height: 1px; margin-top: 20px; margin-bottom: 1.5em; border: 0px; color: #404040; : Lato, sans-serif; : 16px; : 20px; background-color: #cccccc;" /> 3 alt="box-sizing: border-box; : Lato, sans-serif; font-weight: inherit; : 20px; color: #404040; margin: 15px 0px 10px; : 24px; border: 0px; outline: 0px; padding: 0px; vertical-align: baseline; clear: both; font-stretch: inherit; float: left; width: 825px;">REFERÊNCIAS r alt="box-sizing: content-box; height: 1px; margin-top: 20px; margin-bottom: 1.5em; border: 0px; color: #404040; : Lato, sans-serif; : 16px; : 20px; background-color: #cccccc;" />BENTO, Maria Aparecida da Silva. Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições. In: BENTO, Maria Aparecida da Silva [et al] orgs. Identidade, branquitude e negritude contribuições para a psicologia social no Brasil: novos ensaios, relatos de experiência e de pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014
http://www.scielo.br/pdf/csp/v29n11/21.pdf Acesso em 25 Jan 2015. Resenha de A custódia e o tratamento psiquiátrico no brasil: censo 2011. Diniz D. Brasília: Letras Livres/Editora UnB; 2013. 382 p.
HEILBORN , Maria Luiza. ARAÚJO, Leila. BARRETO, Andreia (orgs). Gestão de Políticas Publicas em Gênero e Raça/ módulo I. CEPESC, Secretaria Especial de Politicas para as mulheres; Brasilia , 2010.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos de identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2ª Ed, 2008.
JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. São Paulo: Papirus, 6ª Ed, 2001.
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceitoracial de origem. Sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1, p. 287-308 2006.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Os jovens do Brasil. Rio de Janeiro: Cebela.
Alline Pereira – Colaboradora do Desabafo Social em Juiz de Fora (MG)