Por Celso Deucher
A eclosão dos Movimentos separatistas nos anos 80 e 90 em todo o País especialmente na região Sul, trouxe a tona uma velha reivindicação por autonomias negadas pelo Estado Brasileiro. Tais movimentos também fizeram com que muitos brasileiros repensassem sua posição como membros de uma nação que em muitos casos, acreditam ser “estrangeira”, visto que não encontram laços significativos que os unem.
Nas esteira desta preocupação, sociólogos, historiadores, filósofos, profissionais do direito nacional e internacional, passaram a se perguntar de onde vem essa expressão “de diferente” e por que, ela está tão presente em nosso meio, muitas vezes batendo de frente com antigos conceitos. Uma das conclusões que chegaram é de que o conceito de “povo”, vem a cada dia ganhando novos conteúdos. Já não se pode mais falar que no Brasil exista apenas um povo, segundo pesquisas conceituadas na área. São culturas, usos, costumes, tradições totalmente diversas e distantes inclusive geograficamente. Nem muito menos é possível afirmar que existe uma “Nação Brasileira”, fora dos períodos de Copa do Mundo e de algum outro momento “de comoção nacional”. É cada vez mais raro motivos que consigam aglutinar todos sob a mesma bandeira.
No Sul do Brasil, este sentimento aumenta a cada dia, justamente por que, reside nesta região segundo levantamos, diferenças culturais, econômicas, geográfica, climática e até política em relação ao restante do Brasil. Hoje, não precisa fazer muito esforço para encontrar adeptos do separatismo em larga escala e em todos os setores da sociedade Sulista, comprovando que existe de fato, uma aversão ao que muitos chamam de “Nação Brasileira”.
Trata-se de um coletivo que considera-se povo e reivindica para si, o papel de sujeito de um direito internacional. Por se sentirem “povo”, acreditam que o direito de autodeterminação dos povos lhes assiste na sua reivindicação maior de autonomia e até a de independência.
Laguna, Santa Catarina, conhecida por ser a terra natal da heroína Anita Garibaldi e sede da República Catarinense (movimento separatista que em 1839 proclamou o estado de Santa Catarina independente do Brasil), é sede do Movimento O Sul é o Meu País, um dos principais movimentos de reivindicação do direito de autodeterminação ao povo Sulista. É a partir deste movimento e de fontes bibliográficas do Gesul (Grupo de Estudos Sul Livre), ligado a esta entidade que vamos buscar subsídios para embasar a argumentação sobre a compreensão do que seja esta reivindicação no contexto histórico do Direito de Autodeterminação.
O despertar para o estudo deste direito num contexto jurídico nasce da conjugação entre uma preocupação antiga de caráter humanitário e os estudos de Direito Internacional Público. Parte importante da investigação documental necessária para esta monografia foi sendo realizada ao longo dos anos pelo Gesul, que hoje possui uma biblioteca respeitável em Laguna com mais de 200 obras em mais de 30 idiomas.
Encontrar ou propor soluções para os vários problemas levantados acerca do exercício efetivo do direito de autodeterminação deste coletivo Sul-Brasileiro nos tempos em que vivemos não poderia ser, nem é, o objetivo deste escrito. A competência para tratar destes momentosos problemas caberá à comunidade internacional, representada pela Organização das Nações Unidas e ao próprio estado brasileiro.
Pela nossa parte foi tentado, apenas, realizar um estudo, tão científico quanto possível, que possibilite a compreensão dos princípios e conteúdos que levam essas pessoas a incrementar o conceito de povo na mística coletiva desta região, ainda brasileira. Na posse da recolha bibliográfica possível, e após uma primeira leitura da totalidade do mesmo, foi estabelecido um plano inicial de apresentação para o trabalho escrito, no qual se pretendeu abarcar de forma lógica a generalidade dos conceitos expressados por este movimento.
Examinado o material disponível, tendo sempre em atenção as limitações de dimensão e objetivo, assim como a impossibilidade de consulta em português em relação a obras fundamentais para um estudo mais abrangente do assunto.
Pareceu-nos cientificamente acertado iniciar a apresentação do tema com um conjunto de idéias dedicadas ao estudo dos conceitos de base. Assim, em primeiro lugar estudou-se o conceito de povo no contexto do Direito Internacional, para se seguir com um estudo do conceito de autodeterminação e se terminar com o exame dos sujeitos do direito de autodeterminação.
Numa segunda parte, procuramos estudar o conteúdo do conceito de autodeterminação, encontrando-o subdividido no seu todo e em conjunto, dando forma a um direito considerado superior, pelo Movimento O Sul é o Meu País. Também procuramos esclarecer a natureza jurídica e as características do direito de autodeterminação.
Frise-se que as conclusões aqui expressas não necessariamente são as conclusões filosóficas defendidas pela entidade O Sul é o Meu País ou o Gesul. São, estudos de uma de suas lideranças.
Reconhecemos que para o tema, nos baseamos no livro do Professor Jose A. de Obieta Chalbaud, da Universidade de Deusto, cuja obra “El derecho humano de la autodeterminación de los pueblos”, (Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1985) nos esclareceu e serviu de ponto de apoio para o estudo do tema.
Em um segundo momento, o Manifesto Libertário do Gesul (Grupo de Estudos Sul Livre), e os documentos oficiais do Movimento O Sul é o Meu País, foram as obras que nos deram guarida para desenvolver o pensamento do Movimento Sulista em relação ao assunto.
Para falar em autodeterminação dos povos, temos que antes de mais nada, entender o conceito de povo a partir do que rege o direito internacional, já que a tutela deste direito, está sob os auspícios da ONU (Organização das Nações Unidas).
“Todos os povos têm o direito à livre determinação; em virtude deste direito, determinam livremente o seu estatuto político e orientam livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.
Com este texto a resolução 1514 (XV) da Assembléia Geral das Nações Unidas consagrou, em 1960, o direito de autodeterminação dos povos. Seis anos depois, a Assembléia Geral aprovou o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos, respectivamente com 105 e 106 votos a favor e nenhum voto contra, sendo que, nestes documentos, a fraseologia utilizada é, em tudo, semelhante à da Resolução 1514 (XV).
No texto, os sujeitos do direito de autodeterminação são apresentados como sendo “todos os povos”. Este fato origina a nossa necessidade de iniciar o estudo do tema com um aprofundamento do conceito de povo. Tentaremos, portanto, neste primeiro capítulo, determinar as características necessárias para que um grupo possa ser designado como “povo”, gozando, consequentemente, do direito de autodeterminação.
Para tal, começaremos por examinar os critérios apresentados na tentativa de definir o conceito de povo.
Critério Objetivo
Para os defensores deste critério, deveria ser encontrada uma característica determinada e concreta que, por si só e de forma quase automática, provasse a existência de um povo enquanto tal.
Visando isolar uma tal característica, fez-se recurso a fatores como a história, o território, a religião, a raça e a língua. Nenhum destes elementos tem, no entanto, por si só, caráter decisivo para a caracterização do conceito de povo, embora todos eles contribuam de forma importante para tal caracterização.
Em acréscimo a esta ausência de caráter definitivo devemos ter em consideração a periculosidade do critério para a estabilidade das relações internacionais. Com efeito, levado até às últimas conseqüências, um critério objetivo poderia causar profundas alterações no atual mapa político do planeta, posto poder servir de base jurídica às ambições expansionistas de certos estados e de justificação a anexações de momento consideradas como inaceitáveis.
Por tais razões, somos levados a considerar que o critério objetivo não é, por si só, determinante para a qualificação de um grupo étnico como povo no sentido que é dado à expressão na Resolução 1514 (XV) da Assembléia Geral das Nações Unidas.
Critério Subjetivo
Para os defensores deste critério, seria a vontade subjetiva dos membros do grupo – as pessoas – que determinariam a qualificação internacional do grupo como “povo”. O fator determinante seria, como diz o Professor Obieta Chalbaud, “la mera voluntad de los ciudadanos de vivir socialmente unidos en el futuro.”(Obieta)
Um tal critério parece-nos tão originado de insegurança jurídica-política como o anterior, dada a possibilidade de a flutuação de vontades estar constantemente a dar origem a alterações das uniões sociais. Com a ausência de base estável as uniões ficariam ao sabor de decisões aleatórias e instáveis, numa situação de “plebiscito diário”.
Não podemos, portanto, considerar o critério subjetivo como definitivo quando pretendemos definir o contexto de povo.
Parece-nos, assim, ser evidente a necessidade de tomar em consideração um critério misto objetivo-subjetivo de determinação do conceito de povo em Direito Internacional. A qualificação como critério misto advém-lhe do fato de constituir uma síntese dos dois critérios mencionados.
Uma tal posição, eclética, de conjunção entre todas as características enunciadas em relação com os dois critérios anteriores leva-nos à definição de um conceito novo e qualitativamente diferente dos anteriores. Referimo-nos ao conceito de grupo étnico, por definição dotado de um elemento objetivo – a etnia – e de um elemento subjetivo – a consciência étnica.
Dois novos termos se perfilam no nosso horizonte, necessitando, por isso, de compreensão mais apurada.
Elemento objetivo: a etnia
Etimologicamente, o vocábulo etnia deriva do grego (ethnos), tendo sempre uma conotação cultural. Tentando definir o conceito de etnia, Charles Becquet afirmou, em 1954: “La etnia comprende las comunidades humanas, pueblos y naciones, diferentes por la ciudadania y la religion; pero unidos por la misma cultura y por la misma psicologia, las cuales son resultado de la prática de una misma lengua”. Numa definição mais recente (1983) encontramos: “Grupo de famílias em área geográfica variável, cuja unidade repousa na estrutura familiar, econômica e social comum, na cultura comum.”
Cabe afirmar que o conceito sociológico de cultura é diferente do conceito usual. A cultura deixa de ser apenas o conjunto de conhecimentos adquiridos em relação à produção artística, literária e científica de um grupo, ou grupos, de pessoas, para ser o conjunto de criações, instituições e comportamentos coletivos de um grupo humano. Em síntese, cultura em sentido sociológico, é o sistema de valores que caracteriza a coletividade.
Definido que fica o elemento objetivo do conceito de grupo étnico, passemos a tratar da definição do elemento subjetivo do mesmo conceito.
Elemento subjetivo: a consciência étnica
De forma sumária podemos considerar que a consciência étnica é a consciência que os elementos do grupo têm de pertencer a um grupo com especificidade e alteridade próprias, em conjunto com o desejo de pertencer a esse grupo específico. Tal conhecimento e tal desejo podem existir em proporções diferentes de pessoa para pessoa, determinando graus variáveis de consciência étnica nos diferentes membros do grupo. Mesmo no seio de pequenas amostras pertences a um mesmo grupo étnico bem definido podem ser detectadas diferenças no grau de claridade com que cada elemento se apercebe da individualidade do seu grupo e da diferença existente entre a sua comunidade e as restantes. Clarificado o conceito de grupo étnico através da definição dos elementos que lhe dão origem (etnia e consciência étnica), importa conhecer as formas que o grupo étnico pode revestir: a minoria étnica não territorial, o povo, a nação e a nacionalidade.
Minoria étnica não territorial
Englobado nesta forma de grupo étnico estará todo o conjunto de pessoas que, possuindo unidade cultural e consciência de pertença ao grupo, não dispõe, no entanto, de território próprio. Falar-se de minoria é, também, usar o termo em sentido relativo, posto que, à minoria numérica pode corresponder uma maioria qualitativa e vice-versa. A falta do elemento territorial implica uma ausência de coesão geográfica que obriga a minoria étnica a estar estabelecida em enclaves no seio de etnias diferentes, fato que coloca em perigo a sua própria especificidade étnica.
O povo
Em sentido próprio designa-se por “povo” o grupo étnico em que os seus elementos, além de possuírem a unidade cultural e a consciência de pertença ao grupo ainda dispõem de um território determinado, no qual vive a maioria dos seus membros. Como pode constatar-se, a diferença entre a minoria étnica não territorial e o povo restringe-se à delimitação territorial que pode ser efetuada em relação a este último.
A nação
Terceira forma assumida pelo grupo étnico, nação é um termo que pode receber compreensões em várias áreas. No contexto desta investigação, apenas interessa, porém, o sentido sociológico da expressão. Para a qualificação como nação, o grupo étnico necessita que a consciência étnica deixe de ser uma realidade apenas numa minoria, passando a sê-lo na maioria da população do território. Obieta Chalbaud deixa clara a imprecisão com que as duas classificações se diferenciam quando afirma: “Se podría decir que un pueblo es una nación en potencia y que una nación es un pueblo mayoritariamente consciente” (Obieta)
A nacionalidade
De novo descartando o sentido político da expressão, em favor do sentido sociológico, a nacionalidade pode ser definida como sendo a nação que não goza de autonomia como estado soberano. Embora o princípio das nacionalidades seja a base histórica do moderno direito de autodeterminação, optamos por não nos debruçarmos sobre tal princípio dado que a dimensão restrita de uma investigação como a nossa não justificaria uma extensão da mesma ao princípio referido e o moderno direito de autodeterminação está, já, desligado do princípio das nacionalidades.
Determinadas que estão as várias formas que pode tomar um grupo étnico sujeito do direito de autodeterminação, cabe-nos, agora, dedicar algum tempo ao estudo do direito de autodeterminação em si, para depois estudarmos o conteúdo do mesmo direito.
Tal como está na Carta das Nações Unidas, (Artº 1, nº 2 e Artº 55, nº 1) a expressão autodeterminação parece significar a capacidade de populações, suficientemente definidas etnicamente e em grau de exprimir a sua vontade, disporem de si próprias. Esta capacidade é vista tanto no processo como na doutrina que justifica esse processo, reconhecida e reforçada pela comunidade internacional. Esta definição, no entanto, enuncia já significados multifacetados, e recebe, nas relações internacionais, conotações cujo conhecimento se torna indispensável.
Para esclarecer o que pensa o Movimento Sulista sobre o assunto, abaixo publicamos as perguntas frequentes que são remetidas a organização com as respostas doutrinárias do movimento O Sul é o Meu País.
1 – O Movimento compreende o direito de autodeterminação como “direito a independência”?
MOVIMENTO – Falar de autodeterminação começa por ser fazer referência ao processo pelo qual um grupo étnico atinge o estatuto de unidade política, tornando-se um Estado independente. Parece ser este o significado que, atualmente, se dá ao direito. O Comitê dos 24, da Nações Unidas, tende mesmo para equacionar o direito de autodeterminação com a decisão de independência, considerando apenas esse ato como irreversível. Seriam, assim reversíveis todos os atos de autodeterminação que não originassem o aparecimento de um novo país na cena internacional. Entendimento final sobre isso é a utilização da expressão para conformar o apoio jurídico às pretensões separatistas ou autonomistas de grupos étnicos minoritários ou de áreas coloniais no seio de Estados já estabelecidos. O que é fácil para os povos colonizados torna-se, porém, um pouco mais difícil para os grupos étnicos minoritários, com base na dicotomia entre as manifestações de vontade das Nações Unidas em relação a uns e outros casos.
2 – O movimento concorda então que há dificuldade para que o separatismo seja realidade no Sul do Brasil?
MOVIMENTO - Na realidade, as Nações Unidas tendem a cortar de certa forma tentativas de secessão dentro de estados pré-existentes ao mesmo tempo que apóiam abertamente todas as ações tendentes a terminar com o colonialismo. Um exemplo: Na seqüência da anexação, pela União Indiana, dos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu, foi mesmo enunciada a doutrina segundo a qual todo o colonialismo é opressão permanente, o que impede o reconhecimento de qualquer direito ao agressor. Porém, casos como o do Sul do Brasil, ainda sequer chegou a formar processo na ONU, apesar dos nossos esforços para isso. Marca-se a diferença de tratamento estabelecida entre a quebra de integridade territorial originada pelo fim de uma situação colonial e por vontade expressa de um povo que habita em território parte de nação independente.
3 – O Movimento tem defendido a liberdade de autogovernação. O que vem a ser essa liberdade no contexto da autodeterminação?
MOVIMENTO - Falar de autodeterminação é, também, referir a liberdade de autogovernação que é apanágio de cada unidade política. A liberdade de definir os caminhos político-sociais a percorrer é reconhecida pela comunidade internacional. A não ingerência nos assuntos internos de um Estado é um princípio de base do sistema, sendo apenas aceito três derrogações, a saber: as ingerências que levem à eliminação de qualquer forma de racismo, as ingerências que levem à eliminação do colonialismo, e as ingerências por razões humanitárias. Devemos, também, referenciar que o termo autodeterminação serve de suporte doutrinário ao apoio externo à escolha independente e livre das formas de governo e das políticas seguidas. Esta é, obviamente, uma questão relacionada com a segurança dos próprios povos, em clara ligação com as questões mencionadas acima. Um país terá legitimidade para intervir em defesa das liberdades fundamentais no território de outro país, vítima de pressões externas, ameaças e/ou atividades subversivas. Parece-nos óbvia a relação entre os aspectos focados, dando origem à noção de que o direito de autodeterminação tem aplicação nos âmbitos interno e externo do grupo humano que o exerce. Assim, no que ao âmbito interno diz respeito, podemos referenciar a liberdade de escolha de políticas e formas de governo, bem como a possibilidade de solicitar a intervenção de potências estrangeiras para defesa das liberdades fundamentais. No âmbito externo, é a Resolução 1541 (XV) da Assembléia Geral das Nações Unidas que prevê as soluções para o exercício do direito de autodeterminação.
4 – Afinal, trata-se de separatismo pura e simplesmente, ou trata-se de se buscar maior autonomia para os estados do Sul?
MOVIMENTO – O Movimento O Sul é o Meu País é claro na reivindicação do povo Sul-Brasileiro. Quer o direito total deste povo gerir seu próprio destino. Ou seja a autodeterminação total. As alternativas apresentadas nos textos das Nações unidas são a independência, a associação livre a um Estado soberano, e a integração em um Estado independente. Os Sulistas querem a independência. Porém é necessário deixar claro que se a primeira alternativa (a independência) não recebe qualquer limitação a não ser as que derivam da dificuldade de aceitação da secessão, fato a que foi referido acima, já as alternativas seguintes são reguladas em documentos específicos. Assim, a regulamentação da associação livre pode ser encontrada no Princípio VII, o qual deixa claro que esta é uma opção reversível em qualquer momento. A população do território que se associou a um Estado independente mantém a liberdade de modificar o estatuto do seu território e exprimir a vontade de forma democrática e por métodos constitucionais. Seria o que alguns que fazem parte do movimento O Sul é o Meu País desejam: a Confederação. Por sua vez, a integração num Estado independente está regulada nos Princípios VIII e IX da mesma resolução, onde fica claro que a integração deve dar-se de forma a colocar a população do território integrado em plano de igualdade plena com a população do Estado integrante, e a população do território integrado deverá ter alcançado um estágio de autonomia tal que lhe permita exercer o seu direito de autodeterminação de forma livre e consciente, que praticamente, nessa visão seria permanecer como estamos, apenas lutando por maiores autonomias. Isso, não serve ao povo Sul-Brasileiro.
5 – O Movimento considera que o povo Sul-Brasileiro é sujeito do Direito de Autodeterminação?
MOVIMENTO – Para esclarecer isso, é necessário fazer um pequeno retorno a história. Com o debate do princípio da autodeterminação que aconteceu durante os trabalhos de preparação da Resolução 2200A (XXI), a qual, em 16 de Dezembro de 1966, aprovou conjuntamente o Pacto Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, ganhou acuidade o estudo paralelo do que estes documentos de Direito Internacional afirmam acerca dos sujeitos do direito de autodeterminação. Dado que ambos os Pactos utilizam uma mesma formulação. Vamos citar o estudo que fizemos sobre o Pacto dos Direitos Civis e Políticos. A expressão que designa os sujeitos do direito de autodeterminação é “povos”, afinal a mesma que já havíamos encontrado na Resolução 1514 (XV) e é interpretada como referindo-se a qualquer grupo étnico, independentemente do seu estatuto político internacional. Vemos, assim, aplicado o direito de autodeterminação a todas as formas de grupo étnico conhecidas, bem como a aplicação das duas vertentes do direito, interna e externa. A aplicação do direito de autodeterminação aos povos de repúblicas federais, como a do Brasil, ou de estados multinacionais (também nosso caso) implicaria, no espírito do debate, em duas condições sine qua non: o grupo étnico deveria ser parte de um estado constituído por diferentes grupos étnicos de dimensões semelhantes, e o grupo étnico pretendente deveria ser reconhecido constitucionalmente pelo Estado a que pertencia. Em miúdos: a constituição do Brasil deveria reconhecer os Sulistas como um grupo étnico especifico. Assim, apesar de toda a abertura constatada com a interpretação do termo “povos” na norma do Pacto, acaba por concluir-se que, para os grupos étnicos que não consigam satisfazer estas condições, a autodeterminação terão que lutar muito a nível interno, ficando a resolução dos problemas trazidos pela vontade de exercer o direito de autodeterminação sujeita a fatores subjetivos impossíveis de constatação prévia. Mas, se do ponto de vista do direito nacional existem empecilhos para que os Sulistas sejam sujeitos do Direito de Autodeterminação, no âmbito internacional, temos base jurídica que, no seu espírito democrático, torna-nos sujeitos sim, aptos a reivindicar este Direito humano irrenunciável.
6 – Não seria então, como afirmam alguns especialistas no assunto, apenas para “Povos Coloniais”?
MOVIMENTO - A faceta da aplicação do direito de autodeterminação aos povos dos Estados soberanos sob domínio estrangeiro tornou-se importante por fornecer a base jurídica para o processo de descolonização. Não parece, no entanto, que devamos considerar esta como a forma única, ou mesmo a forma primordial, de entender esta faceta. Cairíamos, com tal visão redutora, num grosseiro erro de interpretação, visto que, texto e trabalhos preparatórios, revelam uma visão abarcante do alcance da afirmação, a qual ultrapassa a situação colonial. Podemos, mesmo, parafraseando o antigo Diretor da Divisão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Dr. John Humphrey, observar que existe contradição entre uma afirmação do direito de autodeterminação para todos os povos, feita repetidas vezes pela Assembléia Geral das Nações Unidas e, por outro lado, uma pretensa reserva para as populações coloniais, a qual obrigaria os que a defendem a admitir que apenas as populações coloniais são povos. Tal conclusão raiaria o ridículo.
7 – O Gesul e o Movimento O Sul é o Meu País defendem nos seus documentos oficiais que o Direito de Autodeterminação implica na existência de outros direitos. Que direitos seriam estes?
MOVIMENTO - O direito de autodeterminação implica, internamente, a existência de outros que a ele estão umbilicalmente ligados e que estão consagrados no Pacto dos Direitos Civis e Políticos. Assim, a liberdade de opinião e expressão (Artº 19º), o direito de reunião política (Artº 21º), a liberdade de associação (Artº 22º), o direito de voto (Artº 25º alínea b) e o direito de tomar parte nos negócios públicos, direta ou indiretamente (Artº 25º alínea a) são, entre outros, aspectos que se pressupõem ao falar do direito de autodeterminação. Sempre que estes direitos são reconhecidos aos indivíduos, podemos dizer que o povo, como um todo, goza da possibilidade de exercer o seu direito de autodeterminação; ao invés, sempre que estes direitos são negados ao povo em geral, podemos afirmar que está a ser infringido o direito em causa. Face ao disposto na Resolução 1541 (XV), o teste para avaliar do reconhecimento do direito de autodeterminação passa pela avaliação do nível de democraticidade dos processos de decisão.
8 – Quais as implicações legais, no âmbito interno, no Brasil, baseado no direito internacional da concessão do direito de autodeterminação ao povo Sulista?
DIREITO - O direito de autodeterminação tem, no âmbito interno, uma tripla implicação adicional pois gera a possibilidade de descolonização, a coexistência pacífica entre estados soberanos e a possibilidade de secessão. Parece claro, pelo que dissemos acima, que a comunidade internacional considera o colonialismo como ilegítimo, existindo mesmo um número considerável de autores que defende que a práxis das Nações Unidas aboliu o artº 73º da Carta e fez emergir um princípio de direito consuetudinário, segundo o qual os estados com responsabilidade de administração de territórios não autônomos são responsáveis por conduzir esses territórios à completa independência, em reconhecimento do seu direito de autodeterminação. Em paralelo com a questão do racismo, a erradicação do colonialismo é, mesmo, ponto de honra da comunidade internacional. No que concerne à coexistência pacífica, parece também ponto pacifico a necessidade de respeito pela soberania dos estados, respeito esse cujo maior cuidado é a não ingerência. Qualquer interferência mais forte – invasão, anexação, etc, é mesmo, considerada como atuação proscrita. Já no nosso caso, o impedimento normativo de desintegração territorial de um Estado defendido pelo número 6 da Resolução 1514 (XV) não é muito claro para com nossa tentativa de secessão. Realizando, porém, uma interpretação lógico-sistemática do princípio enunciado, cuja objetivo é tutelar juridicamente a independência de povos, concluímos que este princípio não oferece qualquer obstáculo jurídico à secessão. Estamos face a contextos jurídicos diferentes, que necessitam, portanto, de ser tutelados por normas diferentes. A aplicação do princípio emanado da norma enunciada pela Resolução 1514 (XV) ao direito de secessão implicaria considerar os povos que pretendem exercer o seu direito de autodeterminação através de um ato de secessão como colonizados, o que criaria enorme confusão, com normas contraditórias para as quais seria necessário aplicar aplicação abrogante, escolhendo a aplicável e deixando outra, decerto inaplicada e inaplicável. A não aplicação do direito de autodeterminação através de um ato de secessão parece-nos um ato contra producente embora possamos aceitar a existência de razões extra-jurídicas para tal tomada de posição.
9 – Em que fase organizativa encontra-se nesse momento o Movimento O Sul é o Meu País em relação a esta reivindicação do direito de autodeterminação?
MOVIMENTO – Hoje o Movimento está presente em mais de 550 municípios do Sul, organizados em comissões municipais de discussão da ideia com nosso povo. Em cada um destes municípios, existe uma diretoria composta por cinco pessoas que a nível local, criam ferramentas de divulgação das idéias. A reivindicação do direito em si esta passando por fases distintas. Nos anos 90, trabalhamos firme por nosso “Direito de Auto-afirmação”, uma das fases para se alcançar o direito maior. Na verdade o Movimento não espera grande coisa de Brasília ou mesmo da ONU em termos de dizer que os Sulistas existem, por que temos consciência que ao invés do que acontece com os Estados, não é necessário qualquer reconhecimento formal, por parte da comunidade internacional, para que uma coletividade humana seja declarada como existente pela referida comunidade. Por isso, as declarações, como o Manifesto Libertário do Gesul, a Carta de Princípios do Movimento O Sul é o Meu País e outros, pois parece imperativo que uma proclamação de qualquer tipo seja uma realidade, sob pena de o grupo não poder ser declarado sujeito do direito de autodeterminação. É, indiscutivelmente, ao grupo que compete levar a cabo tal afirmação de personalidade jurídica. Ao grupo subsiste o direito de se proclamar como “povo”, face à comunidade internacional. Este é um direito inalienável inerente a todos os grupos humanos. É o que os especialistas chamam de direito de afirmação ou, de forma mais completa, direito de auto-afirmação. O reconhecimento jurídico deste direito tem, porém, como condição, a correspondência com uma realidade sociológica objetiva – a caracterização do próprio grupo com recurso ao elemento objetivo (etnia) e ao elemento subjetivo (a consciência étnica) que já foi mencionado, sob pena de não passar de mera ficção. O direito de afirmação aparece-nos, pois, como primeira vertente do direito de autodeterminação, uma espécie de direito prévio ao exercício da autodeterminação. Ademais, o povo Sul-Brasileiro está em fase de total organização para reivindicação do direito. Isso demanda tempo, que não se mede por dias, mas por anos de trabalho e organização.
- Pedro Romano Martinez, Textos de Direito Internacional Público, (Livraria Almedina, 1991)
- Jorge Bacelar Gouveia, Timor-Leste. Resoluções das Nações Unidas, (A.A.F.D.L., 1992),
- Afonso Rodrigues Queiró, Ultramar: direito à independência?, (Atlântica Editora, S.A.R.L., 1974),
- Jose A. de Obieta Chalbaud, El Derecho Humano de la Autodeterminación de los Pueblos, (Madrid: Editorial Tecnos, SA, 1985),
- Jorge Campinos, Direito Internacional dos Direitos Humanos. Textos Básicos, (Coimbra Editora Limitada, 1984),
- Antônio Houaiss (ed.), Nova Enciclopédia Larousse, vol. II, (Rio de Janeiro: Editora Delta, S.A., 1983);
- Jacques Maritain, “Acerca de la Filosofia de los Nuevos Derechos del Hombre”, in Los Derechos del Hombre. Estudios y Comentarios en Torno a la Nueva Declaración Universal reunidos por la U.N.E.S.C.O., (Mexico-Buenos Aires: F.C.E., 1949).
- Gesul – Manifesto Libertário – (Brusque – 2000)
- Gesul – Coletânea de Documentos Oficiais (Laguna – 2001)
- Gesul – Declarações e pactos de direitos humanos (Laguna 2002)
- Gesul – Declarações Internacionais de Direito dos Povos (Brusque 2000)
- Knop Dércio, O Sul quer Confederação (Senado federal 1998)
- Deucher Celso, Sul Livre (Laguna – 2006)
- Movimento O Sul é o Meu País, Carta de Princípios (Laguna – 1992)
extrato do texto de Celso Deucher, fonte:http://meusul.net/news/analise-o-separatismo-sul-brasileiro/