Onze anos após o surgimento da lei que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira sua aplicação efetiva ainda esbarra na falta de comprometimento e nas heranças do preconceito.
30/08/2014
Haroldo Nélio de Goiás
A lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos da Educação Básica, faz parte, junto com a lei de cotas, de ações que objetivam reduzir a exclusão social dos afro-descentes. Eles representam hoje 50,74% da população do país. Especialistas avaliam que o conhecimento dos estudantes aumentou sobre a África e suas afinidades com o Brasil, mas há ainda reclamações dos professores de falta de qualificação e material didático adequado.
A educação para as relações étnico-raciais objetiva formar sujeitos comprometidos com a promoção da igualdade de direitos. Para tanto deve tomar como referências os seguintes princípios (BRASIL, 2004b, p. 17): “consciência política e histórica da diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos; ações de combate ao racismo e a discriminações”. Mais do que falta de material didático, as dificuldades para a implantação efetiva da lei estão ligadas às relações étnico-raciais que constituíram a história do Brasil, que cristalizou preconceitos e estereótipos.
Para Adriana Moreira, professora da rede pública de São Paulo, o professor tem que pensar nos valores civilizatórios afro-brasileiros e como eles podem organizar metodologicamente o seu trabalho dentro da sala de aula. “Mas normalmente é um ou dois professores. Não tem uma disposição do coletivo de professores ou mesmo da gestão da escola em implementar a lei e tornar esse um conteúdo estruturador do currículo e do projeto político pedagógico, da escola” completa.
Serão necessários, segundo o IPEA, 30 anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma política específica de promoção da igualdade racial seja adotada na educação.
Considerada como política de ação afirmativa, a implementação do estudo de história e cultura afro-brasileira colabora para uma melhor compreensão da identidade do povo brasileiro, diminuindo a discriminação aos aspectos artísticos e religiosos dos afrodescendentes. O professor, então, mostra ao aluno a beleza e realeza de seus antepassados, ultrapassando o estereótipo do escravizado ao mesmo tempo em que rompe com a ideia de democracia racial, de uma miscigenação pacífica. A miscigenação, aliás, foi historicamente usada como argumento para não serem implantadas políticas específicas para afrodescendentes. Houve no Brasil uma tentativa de branqueamento. Acreditava-se que a miscigenação, com o passar do tempo, “limparia” a melanina e o branco iria se sobrepor ao negro.
Experiência inovadora
Algumas experiências ajudam a pensar em como lidar com a diversidade étnico racial na educação. Em Goiás o Espaço Cultural Vila Esperança trabalha a mais de 20 anos pela conquista da cidadania a partir da educação, da cultura e da arte, desenvolvendo atividades direcionadas a crianças e jovens de baixa renda, para a apropriação e valorização das origens africanas e indígenas do povo brasileiro. Escolas da cidade e região participam de oficinas ligadas a essas matrizes culturais, em dois momentos: o Ojó Odé, com oficinas de estética afro, capoeira angola, dança, percussão, tecelagem, cerâmica, língua Iorubá, culinária; e o Porancê Poranga, com oficinas de trançados em palha, grafismo e pintura corporal indígena, culinária, cerâmica, adornos, brincadeiras, língua Tupi Guarani.
Para Robson Max, antropólogo e presidente fundador da Vila Esperança, “tudo isso vai trazer para as crianças um respeito às diferenças, um amor ao seu patrimônio cultural, material e imaterial. Vai desfazer padrões de estéticas, de não ter cabelo trançado nem crespo, e nem determinada cor A,B ou C.”
A Vila Esperança mantém ainda uma escola que antecedeu à criação da lei 10.639/2003. A Escola Pluricultural Odé Kayodê atende crianças da primeira fase do ensino fundamental e educação infantil. A educadora Emicléia Alves Pinheiro conta que os conteúdos afro e indígena estão internalizados na equipe, o que torna o trabalho naturalmente prazeroso. “A lei resulta numa questão de imposição. Nós fazemos porque está no currículo, mas também porque acreditamos e sabemos que isso faz parte da nossa vida, da nossa identidade.”
Para Rosângela Magda, diretora da Escola Pluricultural Odé Kayodê, o que falta é boa vontade para trabalhar com a diversidade étnico racial. “Dá muito trabalho e o ser humano é muito comodista. A pessoa tem que acreditar e ter muita força para ir contra a maioria. Muitas professoras da rede pública já passaram por aqui e saem maravilhadas com o que aprenderam, mas confessam que não dá para trabalhar isso na escola porque dá muito trabalho. Formação é importante, mas o que falta mesmo é a vontade em trabalhar,” completa.
A escola da Vila Esperança recebeu o prêmio Educar para a Igualdade Racial do CEERT em 2010 e 2012 pelas ações educativas ligadas ao projeto Vivências Culturais e ao Afoxé Ayó Delê, respectivamente.
Referências:
MENDES, Lilian Marta Grisolio. Interculturalidade e o Ensino de História Indígena: os avanços e entraves das políticas públicas na temática indígenas nas escolas, Anais de Congresso, VII ENCONTRO DO CEDAP - Culturas Indígenas e Identidades, abril de 2014.
PASSOS, Ana Helena Ithamar. De escravizado à cidadão: O negro no pós-abolição e a construção de uma política de branqueamento, IN: Construindo a igualdade racial, Secretaria Municipal de São Paulo, CONE, PMSP:2010, P. 65-80.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil. Porto Alegre, RS, set./dez. 2007
Fontes:
www.brasildefato.com.br/node/27039
www.ceert.org.br
www.ibge.gov.br
www.ipea.gov.br
www.vilaesperanca.org